Um dos muitos problemas da história bíblica que até hoje ainda não foi totalmente esclarecido diz respeito aos Samaritanos, às suas origens e ao seu relacionamento com outros grupos dentro do javismo, mormente com os Judeus.
O interesse desta questão não se limita apenas ao judaísmo, mas diz respeito também ao
cristianismo, já que o NT é fértil em alusões aos samaritanos e a Igreja primitiva encontrou aí um bom espaço de acolhimento.
A origem e identidade dos samaritanos não se apresentam bem definidas no AT;
Os textos conotados com esta problemática não são claros e os elementos extra-bíblicos que hoje se possui sobre a isso também não chegam a explicar a questão em toda a sua amplitude.
Acontece aqui algo que é comum a muitos outros enigmas da história bíblica:
Os informes de carácter histórico que a Bíblica nos oferece, especialmente as tradições que remontam a um período antigo, devem ser considerados e analisados tendo em conta a perspectiva teológica que lhes serve de quadro de fundo e a situação concreta da época em que os textos foram redigidos.
Isto vem a propósito da perícope de 2 Re 17, 24-41 que é apresentada, em algumas traduções bíblicas, para justificar a origem dos samaritanos na sequência da queda do reino do Norte (Samaria) em 722/21 às mãos de Salmanasar V e Sargão II.
Efetivamente, há aí algumas alusões ao problema em si, mas nada se diz de concreto sobre a origem e a problemática dos samaritanos as referências muito discretas encontraremos nos livros do pós-exílio,especialmente em Esdras e Neemias e em outros escritos extra--bíblicos.
Podemo estudar este tema recorrendo às diversas fontes que possuímos e pondo em confronto os diferentes dados recolhidos, sem no entanto,descurarmos a perspectiva teológica que está na base do próprio problema, tal como é realçado cm certa literatura sobre o assúnto2
1. 2 Re 17,24-41: Origem dos samaritanos?
Este texto tem efetivamente uma importância fundamental para a compreensão deste problema, não tanto pelos elementos concretos que nos oferece, mas especialmente pelo quadro de fundo da situação que aí é traçada e por constituir a única alusão clara e explícita aos samaritanos no âmbito do AT.
2 Re 17 tem como objectivo, antes de mais, apresentar uma explicação teológica para a queda do reino do Norte e a deportação dos seus habitantes.
O motivo vem claramente expresso nos vv. 7-12: a idolatria.
Em seguida, se chama a atenção de Judá, reino do Sul, para que não siga os mesmos caminhos, preparando desta forma o povo para o castigo iminente que Deus pode fazer cair sobre ele (v. 19).
Em 2 Re 17,34ss temos uma situação totalmente diferente, cuja finalidade é mostrar o carácter sincretista da população do Norte.
O texto divide-se assim em duas partes bem distintas, tanto na sua temática como no objetivo que escondem.
l. 2Re 17,1-23 2. 2 Re 17,24-41 vv. 1-6:
Situação histórica dos acontecimentos; vv. 25-28 e 32: Situação histórica com referência discreta aos estrangeiros que são importados para povoar a Samaria e às suas práticas sincretistas, acabaram vindo junto 7-18 - 20-23: Teologia de deuteronômio sobre as causas da destruição do reino do Norte;
Concluindo, facilmente se pode constatar que tudo isto se apresenta como uma consequência da divisão do reino de David por Jeroboão (v. 21).
Esta alusão (vv. 29 e 32) aos templos que eles teriam construído nos Altos é apontada como fundamento para dizer que aqui se situa a origem histórica dos samaritanos.
Porém, uma pergunta se impõe: quem são afinal esses samaritanos?
Depois de elencar os vários povos estrangeiros trazidos pelo rei da Assíria para habitar as cidades da Samaria e de referir as diferentes divindades veneradas por estes, a alusão aos samaritanos aparece aqui de passagem e é em tudo secundária no contexto, pelo que facilmente leva a concluir que se trata duma ajunta posterior.
Por outro lado, o redator final do texto dá provas duma certa dificuldade na conciliação das diversas fontes ou tradições que serviram de base à sua redação.
Exemplos disso são os vv. 32 e 34:
Estes e outros versículos mostram-nos bem que o texto é complexo, fruto talvez de diversas fontes que o autor procurou harmonizar em função dum objetivo final que se propunha atingir, recorrendo a uma explicação de carácter etiológico bem evidente na frase 'ad haiiôm hazzeh (até aos nossos dias, até hoje) que se encontra nos vv. que fazem de transição e que dão sequência ao longo do discurso: vv. 23.24 e 41 4.
Além disso, em 2 Re 17,28 temos a recordação do santuário de Betel que Jeroboão tinha mandado construir a fim de impedir que o povo do seu reino continuasse a subir a Jerusalém para aí prestar culto a Deus.
Esta alusão ao templo de Betel pode ser um indício da luta em prol da unicidade cultual exercida, como sabemos, pelo alto clero de Jerusalém e pela, qual se reforçará no período do pós-exílio, especialmente já no tempo dos Macabeus.
Temos assim que esta passagem enumera uma série de povos trazidos de fora com seus ídolos, pondo em evidência o facto dos cultos idolátricos terem sido misturados com o de Deus e a pluralidade dos santuários estabelecidos nos Altos .
Embora os samaritanos e o seu sacerdócio sejam aí referidos, não há uma condenação explícita acerca deles; o mesmo acontece com Betél.
Outro tanto não sucede já em relação aos cultos idolátricos importados pelos novos habitantes da terra.
Estes é que são explicitamente condenados pelo seu sincretismo religioso, já que ao culto de Jeoá juntaram igualmente ao culto dos seus ídolos.
Porém, não se diz que os habitantes nativos, os samaritanos, fossem idólatras;apenas se apontam os santuários construídos por estes nos Altos, o que deixa entender que eles ainda se encontravam na órbita da fé Jeová Deus, embora não respeitassem a unicidade cultual.
Perspectivas teológicas de 2 Re 17,24-41.
A análise estrutural do texto feita antes mostra-nos que este resulta da harmonização de, pelo menos, duas fontes que o redactor final leva a cabo através dum processo de «Wiederaufnahme» com a frase 'ad haiiotn hazzeh (vv. 23.34.41). A primeira dessas fontes (vv. 25-28+33) engloba as tradições centradas em Betei e que foram sempre objecto de repulsa e condenação dos círculos sacerdotais e deuteronomistas de Jerusalém1.
A razão desta condenação assenta, basicamente, no próprio cisma político ao tempo de Jeroboam e suas consequências religiosas, entre as quais se conta a construção do santuário de Betei para rivalizar com o de Jerusalém8 e assim impedir que o povo continuasse a subir a Sião.
A segunda fonte (vv. 29-31 e 34-40), por sua vez, vai directa-mente contra os estrangeiros trazidos para habitar a Samaria e que acabam por misturar os seus cultos idolátricos com o de Javé9. A condenação que aqui é expressa não engloba apenas os estrangeiros vindos no tempo dos reis assírios, mas também os posteriores da época persiana e helenística e apresenta-se como um processo lógico no crescente antagonismo Jerusalém-Samaria, bem evidente no período do pós-exílio10.
A condenação destas práticas sincretistas é posta em evidência no contraste que o discurso faz entre os preceitos de Deus e o procedimento dos habitantes do Norte.
Como já se nota, o texto apenas alude uma vez, que é também a única em todo o AT, aos samaritanos, chamando-os pelo seu verdadeiro nome, já que a tradição judaica posterior chama-lhes Kutim(derivado da cidade de Kuta, vv. 24 e 30), pondo assim em destaque a sua proveniência estrangeira.
Face a este contexto, pode-se facilmente deduzir que o objetivo de 2 Re 17,24-41 não é mostrar a origem dos samaritanos enquanto entidade bem definida, mas antes oferecer-nos uma explicação de carácter teológico sobre a polêmica que opõe o hebreu ortodoxo ao grupo sincretista do norte, o qual foi adquirindo pouco a pouco a sua identidade própria.
No entanto, importa ter em mente que a condenação aí formulada é o resultado duma luta de séculos, luta essa que apenas se pode compreender se a situamos no período persa que se segue ao regresso da Babilônia aquando das grandes reformas levadas a cabo por Esdras e Neemias.
E fundamental-mente nos livros destes dois personagens que se encontram os dados mais significativos sobre o problema e é na sequência dos factos aí descritos que se vai acentuando o fosso entre Jerusalém e Samaria, fosso esse que encontra as suas origens num período remoto da história de Israel.
Assim, o nosso texto parece ser mais a explicação teológica duma realidade posterior do que a narração histórica dos acontecimentos passados na época da colonização assíria.
3. Contributo de Esdras e Neemias
O período do pós-exílio reveste-se duma importância extraordinária na formação e orientação do judaísmo posterior. Dessa época e ligados a uma tal tarefa estão dois nomes que cimentaram os alicerces da comunidade judaica de Jerusalém: Esdras e Neemias1
É difícil delimitar claramente a sua obra e as suas atribuições específicas.
Esdras é apresentado como escriba (Esd 7,6) e secretário da Lei do Deus do Céu (7,12).
Neemias, por sua vez, é chamado governador (Ne 8,9; 10,2:
Embora sejam difíceis de definir, as funções de Esdras assumem um carácter mais nacionalista e religioso, enquanto que as de Neemias são de natureza administrativa e ligadas à reconstrução de Jerusalém
Ora, são estes dois personagens que irão contribuir, de forma definitiva, para acentuar a polemica entre Jerusalém e Samaria, o que levará ao rompimento das relações entre a comunidade judaica e a população do Norte.
As razões são simples.
A obra destes dois chefes colidia com os interesses e a autoridade dos responsáveis da Samaria, os quais se apressaram a denunciar a reconstrução das muralhas de Jerusalém junto do poder central (Ed 4,12-13).
Os elementos mais preciosos sobre esta problemática estão pre-sentes nos livros de Esdras e Neemias (Ed 4,1; Ne 3,33s; 4,ls; 6; 13,27-28).
Assim, Ed 4,1-10 apresenta-nos uma lista dos inimigos da sua obra quando se encontrava a edificar o Templo de Deus.
Porém não nos diz que são samaritanos (isto são, elementos da autêntica população do Norte), acentuando antes a sua proveniência estrangeira de acordo com o texto de 2 Re 17,24-41.
É justificado no sincretismo religioso que Esdras recusa da ajuda para a reconstrução, o que levará então a abrir as hostilidades entre os recém-chegados de Babilônia e a população da terra.
De facto, as razões invocadas tanto por Esdras como por Neemias não acentuam muito a perspectiva religiosa que os separa dos seus adversários, pelo que deixam antever que, no fundo, há motivações políticas que estão na base da recusa da ajuda oferecida, o que aumentará, ainda mais, a animosidade entre os dois grupos.
Efetivamente, os judeus não queriam depender da autoridade da Samaria e, face aos documentos de que eram portadores (Ne 2,7-9; Esd 7,1) julgavam-se com o direito de dirigir os negócios da comunidade, tanto políticos como religiosos.
Entre os adversários de Esdras e Neemias destacava-se o nome dum tal Sanballat, governador da Samaria.
Este é o maior adversário da obra de Neemias (Ne 6), o que deixa entender que por detrás do conflito se escondem motivações políticas e não apenas religiosas como se poderia depreender de 2 Re 17,24-41.
Entre essas está certamente o problema da autoridade.
Tinha ou não o governador da província autoridade sobre os recém-chegados de Babilônia?
O texto bíblico não o diz claramente; porém, num primeiro momento, Sanballate seus aliados conseguem impedir a reconstrução dos muros e da cidade (Esd 4,11-24), até que Neemias vem a ser nomeado governador da terra de Judá , o que então lhe permite levar a cabo nobre tarefa da reconstrução (6,1) e libertar o povo dos gravosos impostos que exigiam os seus predecessores (5,14-18).
Por outro lado, quando aparecem os conflitos internos na comunidade judaica de Jerusalém, as autoridades de Samaria oferecem refúgio e acolhem os revoltosos.
O caso mais concreto é o do sacerdote Manassés, neto do sumo-sacerdote Eliasib e genro de Sanballat, o qual se refugia no Norte e aí, segundo conta Flávio Josefo, recebe a promessa da construção dum templo sobre o monte Garizim a fim de exercer o culto, dando origem a uma dinastia sacerdotal rival da de Jerusalém .
O exemplo parece ter sido seguido por vários outros sacerdotes e levitas, os quais não estavam dispostos a acatar, passivamente, as imposições javistas da comunidade de Jerusalém, caso concreto dos matrimônios mistos com mulheres pagãs que eram vedados à classe sacerdotal.
E claro que estas dissensões sendo alimentadas e bem acolhidas na Samaria, não o eram apenas por razões religiosas ou simplesmente de carácter cultual.
Por trás escondiam-se também motivações de carácter político que se vão acentuando com o domínio helenístico da Palestina.
De fato, alguns autores pensam que a separação das duas comunidades pode tr acontecido no período persa, tal como o deixam entender os livros de Esdras e Neemias, sendo uma consequência direta dos crescentes privilégios adquiridos pela comunidade judaica e da redução de poderes da classe dirigente da Samaria.
Todavia, apesar das tensões existentes, não parece que o cisma já estivesse consumado nessa altura.
A comunidade samaritana continuava na órbita normalmente; Zac 9,13 fala-nos ainda da esperança numa salvação a dois (Israel e Judá) e na cidade da Samaria continuavam dar refúgio aos sacerdotes que fugiam de Jerusalém.
Os matrimônios mistos entre os grupos dirigentes mostram igualmente que as relações se mantinham. A crer no relato de Flávio Josefo, a ruptura poderia ter sucedido já no período helenístico na sequência, aliás, da construção do templo samaritano sobre o Garizim que entretanto fora autorizado por Alexandre Magno depois de ter vencido Dario III e posto fim ao domínio persa na Palestina.
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