Na erudição neotestamentária, é quase axiomático que, seja quem for que tenha escrito o terceiro evangelho, também escreveu Atos (veja a disc. acerca de 1:1-5).
Tradicionalmente esse autor tem sido identificado como Lucas, o médico e companheiro de Paulo.
Nos manuscritos dos evangelhos,encontra-se "Segundo Lucas", quando se trata do terceiro evangelho.
Esse evangelho nunca foi conhecido por outro nome.
O nome Loukas (como aparece no grego) talvez seja abreviatura de Loukanos; tem-se observado que os nomes próprios contraídos que
terminam em as eram comumente usados para os escravos.
Talvez tenha sido essa a formação profissional de Lucas, visto que os escravos às vezes eram treinados para serem médicos.
Entretanto, os fatos concretos a respeito de Lucas são escassos.
Seu nome aparece apenas três vezes no Novo Testamento (Colossenses 4:14; 2 Timóteo 4:11; Filemon 24).
Dessas referências deduz-se que Lucas era gentio e esteve com Paulo em Roma, quando Colossenses e Filemon foram redigidas e (talvez) mais tarde, quando
o apóstolo escreveu 2 Timóteo; todavia, não parece que ele tenha sido prisioneiro, como Paulo às vezes o foi nessas ocasiões.
A evidência que temos sugere que Lucas poderia ter residido em Antioquia da Síria.
A declaração mais antiga que temos a esse respeito aparece no prólogo antimarcionista do terceiro evangelho, que assim se inicia: "Lucas, médico de profissão, era de Antioquia".
Eusébio e Jerônimo também estavam cientes dessa tradição, havendo mais dois pequenos fragmentos de evidência no próprio livro de Atos que fazem aumentar o apoio a essa hipótese (presumindo-se, por enquanto, que Lucas redigiu esse livro).
Em primeiro lugar, dos sete diáconos "ajudadores", cujos nomes nos são dados em 6:5, o único cujo lugar de origem é mencionado é Nicolau, um
gentio de Antioquia.
Esta menção pode refletir o interesse particular do autor por essa cidade.
A segunda evidência é o texto ocidental, que tomava forma no segundo século, o qual acrescenta as palavras: "quando estávamos reunidos...
" em 11:28. O ambiente é a igreja de Antioquia, e o emprego da primeira pessoa sugere que o próprio Lucas era membro dessa igreja à época em que o incidente que ele descreve aconteceu.
Se aceitarmos esta tradição,Lucas pode ter sido um daqueles gregos a quem os homens de Chipre e de Cirene pregaram, em 11:20 .
Todavia, permanece a pergunta: Foi Lucas quem escreveu Atos?
Afirma a tradição unanimemente que ele o escreveu.
E o livro em si?
Será que ele oferece alguma iluminação sobre quem o teria escrito?
As evidências internas repousam em grande parte nas passagens em que há o pronome "nós", quando a primeira pessoa do plural substitui a terceira pessoa, na
narrativa.
— há um total de 97 versículos assim.
A primeira dessas passagens marcadas por "nós" aparece sem qualquer aviso em 16:10-17 (a viagem de Trôade para Filipos); há outra em 20:5-15 e em 21:1-8 (a viagem para
Jerusalém), e outra ainda em 27:1-28:16 (a viagem marítima de Cesaréia a Roma).
Tem-se apresentado a sugestão, às vezes, que o autor empregou a primeira pessoa do plural nessas passagens como recurso literário, pois
encontram-se outros relatos de viagens em que a pessoa escreve na primeira pessoa do plural .
Entretanto, fosse esse o caso, por que não ocorre consistentemente?
Ele narra algumas viagens na terceira pessoa do singular (9:30; possivelmente 11:25s.; 13:4, 13; 14:26; 17:14; 18; 18, 21).
De qualquer modo, a maioria dos exemplos de narrativa na primeira pessoa do plural em que se apoia essa teoria tirada de Homero e de outros poetas,
dificilmente pode ser comparada com a prosa histórica de Lucas. A. D.
Nock vai mais além quando diz que o "nós" fictício nesse caso poderia não representar aqui o mesmo paralelo, e é mais improvável ainda para um escritor
que afirma, como Lucas, estar escrevendo uma história real .
Então, se estas passagens com "nós" representam o genuíno envolvimento do narrador nos acontecimentos, podemos explicá-los como se o autor e Atos estivesse assumindo o uso de um diário próprio de bordo, ou o de
alguém.
Todavia, essas passagens foram escritas num estilo que não se diferencia do resto do livro, de modo que se o autor estivesse utilizando o
trabalho de outrem, precisamos supor que o autor o tenha reescrito totalmente a fim de eliminar todos os traços do estilo original.
No entanto, teria feito isto com certa negligência, pois nem sempre se lembrou de introduzir a mudança da primeira pessoa para a terceira.
A explicação bem mais simples é que o autor estava utilizando seu próprio material escrito, e permitiu que a primeira pessoa do plural permanecesse a fim de indicar em que
pontos ele próprio tomou parte nos acontecimentos.
"Desde o início, esta seria a única maneira pela qual os leitores.
— o primeiríssimo dos quais foi Teófilo,a quem o autor dedicou os dois volumes, e com quem teria um relacionamento pessoal .
— poderiam ter entendido as passagens marcadas por 'nós'.
Deduz-se daí que o autor de Atos foi companheiro de Paulo.
De todos os candidatos à possível autoria, Lucas é um dos pouquíssimos que não são excluídos graças a Uma variedade de razões.
Sabemos que ele estava em Roma com Paulo, como também o escriba e, embora as evidências fiquem sem o peso das provas, elas pelo menos apontam com maior certeza na
direção de Lucas que noutra direção qualquer.
Entretanto, nem todos os eruditos aceitam isto. A principal objeção levantada pelos que não aceitam esta conclusão é que nenhum companheiro
de Paulo, fosse ele Lucas ou outra pessoa qualquer, teria traçado o retrato do apóstolo Paulo que esse autor traça.
Ninguém que tivesse conhecido o apóstolo, afirma-se, tê-lo-ia apresentado como este livro o apresenta.
Nas cartas, até quase no final de sua vida, Paulo estava em grave conflito com os que resistiam contra a admissão livre dos gentios à igreja.
Em Atos esse problema é levantado e resolvido em grande parte no âmbito de um único capítulo (cap. 15), e nunca mais se toca no assunto.
Nas epístolas, Paulo é um apaixonado defensor de seu aposto-lado.
Nada disso se lê em Atos.
No livro todo ele é chamado de apóstolo duas vezes e isso ocorre, outra vez, no espaço estreito de um único capítulo (14:4, 14). Costuma-se dizer que o
Paulo de Atos tem uma cristologia, uma teologia natural, uma escatologia e uma compreensão da lei inteiramente diferentes das do Paulo das cartas .
Ele aceita as determinações do concilio; circuncida Timóteo; propõe-se a perfazer um rito de purificação, e ajuda outros a fazer o mesmo.
É este o apologista radical de Gálatas?
Creio que é.Devemos lembrar-nos de que, em Gálatas, Paulo é pressionado por uma urgência terrível na controvérsia que ameaçava os alicerces da própria
fé.
É natural que nessas circunstâncias Paulo falasse veementemente contra a imposição da lei sobre os gentios.
Todavia, noutra passagem nós o encontramos assumindo a opinião de que os atos ritualísticos em si mesmos não são bons nem maus, exceto quando a intenção os qualifica.
Isso nos faz lembrar a expressão sarcástica de Emerson a respeito da "coerência tola" que caracteriza "os demoniozinhos de mentes estreitas, adorados por estadistas,
filósofos e religiosos de espírito raso".
Em vão procuraríamos tal coerência na vida de Paulo, visto que sua mente era preeminentemente ampla.
No que dizia respeito aos grandiosos princípios fundamentais da fé, Paulo não se comprometia; sempre que estes não eram prejudicados, o apóstolo era a mais
adaptável das pessoas.
Talvez Lucas não o tenha entendido com perfeição.
Pode não ter assimilado a teologia paulina, nem sentido com a mesma intensidade as questões que tocavam o apóstolo com ardor. Entretanto, tendo-se considerado todas as coisas, "as objeções contra a opinião de que Lucas
estava a par das idéias de Paulo não são tão fortes de modo que ultrapassem as evidências consideráveis de que a compreensão de Lucas era perfeita".
É preciso que mantenhamos em mente que a perspectiva que Lucas tinha de Paulo era bem diferente da nossa.
Nós vemos o apóstolo como teólogo; Lucas o via como "um missionário, um carismático fundador de comunidades"
Lucas é o único autor do Novo Testamento que diz algo a respeito de seus métodos.
Todavia, diz-nos muito pouco. Resume-se no seguinte: ao escrever o evangelho , usou as melhores fontes disponíveis (Lucas 1:1
ss.)
Além do mais, no caso do evangelho somos capazes de ver como foi que Lucas as manuseou, visto que duas dessas fontes nos são conhecidas .
— O Evangelho segundo Marcos e um documento que veio a perder-se, que Lucas partilhou com Mateus, e que até certo ponto podemos reconstituir (o assim chamado ).
Fica logo aparente ao leitor que embora Lucas exercesse suas prerrogativas editoriais de cortar e polir o material que veio às suas mãos,ele todavia mostrou-se notavelmente fiel às suas fontes.
Portanto, em Atos, é razoável supor que Lucas serviu-se de outros materiais primitivos, não sendo menos fiel na transmissão desses fatos do que fora na transmissão do
evangelho.
Algumas indagações propositivas.
ResponderExcluirPorque o livro de Atos foi escrito? Porque o livro de Atos, não menciona as cartas de Paulo? Por que o livro de Atos não menciona as Comunidades de Paulo?