(HERBERT MARCUSE( EROS E CIVILIZAÇÃO) TRECHO DO LIVRO.
Uma Interpretação Filosófica do Pensamento de Freud.
Poderemos falar de uma junção das dimensões erótica e política?
Na e contra a organização terrivelmente eficiente da sociedade afluente, não só o protesto radical, mas até a tentativa de formulação, de articulação, de dar palavras ao protesto, assume uma imaturidade pueril, ridícula.
Assim,é ridículo e talvez lógico que o Movimento pela Liberdade de Expressão, em Berkeley, terminasse em balbúrdia e brigas entre os participantes, por causa do aparecimento de um cartaz com um palavrão.
Talvez seja igualmente ridículo e legítimo ver uma significação mais profunda nos distintivos usados por alguns manifestantes(entre eles, crianças) contra os morticínios do Vietname:
Make Love, Not War (Faça Amor, Não Guerra).
Por outro lado, contra a nova mocidade que se recusa e rebela, estão os representantes da antiga ordem, que já não são capazes de proteger a existência dela sem a sacrificarem numa obra de destruição, desperdício e poluição.
Neles se incluem agora os representantes da mão-de-obra sindicalizada e corretamente, na medida em que o emprego, no quadro da prosperidade capitalista, depende da contínua defesa do sistema social estabelecido.
Poderá o resultado, num futuro próximo, oferecer dúvidas?
O povo, a maioria das pessoas na sociedade afluente, está do lado daquilo que é não com o que podia e devia ser.
E a ordem estabelecida é suficientemente forte e eficiente para justificar essa adesão e garantir a sua continuidade.
Contudo, o próprio vigor e eficiência dessa ordem podem-se tornar fatores de desintegração. A perpetuação da cada vez mais obsoleta necessidade de trabalho em tempo integral (mesmo numa forma muito reduzida) exigirá o crescente desperdício de recursos, a criação de empregos e serviços cada vez mais desnecessários e o crescimento do setor militar ou destrutivo.
Guerras mantidas em sucessivas escaladas, permanente preparação para uma conflagração bélica e administração total podem muito bem bastar para manter o povo sob controle, mas à custa de alterar a moralidade de que a sociedade ainda depende.
O progresso técnico, em si mesmo uma necessidade para a manutenção da sociedade
estabelecida, fomenta necessidades e faculdades que são antagônicas da organização social do trabalho, sobre a qual o sistema está edificado.
No processo de automação, o valor do produto social é determinado em grau cada vez mais diminuto pelo tempo de trabalho necessário para a sua produção. Conseqüentemente, a verdadeira necessidade social de mão-de-obra produtiva declina, e o vácuo tem de ser preenchido por atividades improdutivas.Um montante cada vez maior do trabalho efetivamente
realizado torna-se supérfluo, dispensável, sem significado.
Embora essas atividades possam ser sustentadas e até multiplicadas sob uma administração total, parece existir um teto para o seu aumento.
Esse teto, ou limite superior seria atingido quando a mais-valia criada pelo trabalho produtivo deixa de ser suficiente para compensar o trabalho não-produtivo.
Uma progressiva redução de mãode-obra parece ser inevitável, e o sistema, para fazer face a essa eventualidade, tem de prover à criação de ocupações sem trabalho; tem de desenvolver necessidades que transcendem a economia de mercado e que podem até ser incompatíveis com êle.
A sociedade afluente está-se preparando, à sua maneira, para essa eventualidade, organizando o desejo de beleza e os anseios da comunidade, a renovação do contato com a natureza, o enriquecimento do espírito e as honras à criação pela criação.
O falso timbre de tais proclamações é indicativo do fato de que, dentro do sistema estabelecido, essas aspirações são transladadas
para as atividades culturais administradas, patrocinadas pelo Governo e as grandes companhias um prolongamento de seu braço executivo, penetrando na alma das massas.
É quase impossível reconhecer nas aspirações assim definidas as de Eros e sua transformação autônoma de um meio e de uma existência repressivos.
Se essas finalidades tiverem de ser satisfeitas sem um conflito irreconciliável com os requisitos da economia de mercado, deverão ser satisfeitas dentro do quadro estrutural do
comércio e do lucro.
Mas este gênero de satisfação equivaleria a uma negação, pois a energia erótica dos Instintos de Vida não pode ser libertada sob as condições desumanizantes da afluência lucrativa. Certo, o conflito entre o necessário desenvolvimento das necessidades não econômicas, que validaria a idéia da abolição do trabalho(a vida como um fim em si), por um lado, e a
conveniência em manter a necessidade de ganhar a vida, por outro lado, é muito maneável, especialmente enquanto o Inimigo interno e externo puder servir como força propulsora, escorando a defesa do status quo. Contudo, o conflito pode tornar-se explosivo se fôr acompanhado e agravado por perspectivas de mudança na própria base da
sociedade industrial avançada, nomeadamente o gradual desmoronamento da empresa capitalista em processo de automação.
Entrementes, há coisas a fazer.
O sistema tem seu ponto mais frágil justamente onde apresenta sua força mais brutal: a escalada do seu potencial militar (que parece impor a atualização periódica, com interrupções cada vez mais curtas de paz e de prontidão).
Essa tendência só parece reversível sob as mais fortes pressões, e tal reversão ativaria as zonas de perigo na estrutura social: a sua conversão num sistema capitalista normal é
dificilmente imaginável sem uma séria crise e transformações econômicas e políticas arrasadoras.
Hoje,a oposição à guerra e à intervenção militar ataca nas raízes: revolta-se contra aqueles cujo domínio econômico e político depende da contínua (e ampliada) reprodução do
estabelecimento militar, seus multiplicadores e a política que precisa dessa reprodução,de homens aptos para confronto.
Esses interesses não são difíceis de identificar, e a guerra contra eles não requer mísseis, bombas e napalm.
Mas exige, efetivamente, algo que é muito mais difícil de produzir: a divulgação de conhecimentos livres de censura e manipulação, consciência e, sobretudo, a recusa
organizada em continuar trabalhando com os instrumentos materiais e intelectuais que estão sendo agora usados contra o homem para a defesa da liberdade e prosperidade daqueles que dominam o resto .
Na medida em que o trabalhismo, a mão-de-obra sindicalizada, atua em defesa do status quo, e na medida em que a quota-parte de trabalho humano no processo material de produção declina, as aptidões e capacidades intelectuais tornam-se fatores sociais e econômicos.
Hoje, a recusa organizada dos cientistas, matemáticos, técnicos, psicólogos industriais e pesquisadores de opinião pública poderá muito bem consumar o que uma greve, mesmo
uma greve em grande escala, já não pode conseguir, mas conseguia noutros tempos, isto é, o começo da reversão, a preparação do terreno para a ação política.
Que a idéia pareça profundamente irrealista não reduz a responsabilidade política subentendida na posição e na nfunção do intelectual na sociedade industrial contemporânea.
A recusa do intelectual pode encontrar apoio noutro catalisador, a recusa instintiva entre os jovens em protesto.
É a vida deles que está em jogo e, se não a deles, pelo menos a saúde mental e capacidade de funcionamento deles como seres humanos livres de mutilações.
O protesto dos jovens continuará porque é uma necessidade biológica. Por natureza, a juventude está na primeira linha dos que vivem e lutam por Eros
contra a Morte e contra uma civilização que se esforça por encurtar o atalho para a morte, embora controlando os meios capazes de alongar esse percurso. Mas, na sociedade administrativa, a necessidade biológica não redunda imediatamente em ação; a organização exige contra-organização.
Hoje, a luta pela vida, a luta por Eros, é a luta política.
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