Enlouqueci de luxúria, as coisas abomináveis que fiz: depravação grosseira, um excesso dos prazeres do inferno.
Desejo carnal como pântano borbulhante e sexo viril brotavam em mim, exsudando névoas...”
Santo Agostinho era um maníaco sexual.
Ou assim nos faria acreditar que sim.
Suas famosas Confissões continha páginas e páginas de autopenitência, por ele ser o “mais vil escravo das paixões
perniciosas” e por se entregar à “imundície da libertinagem”.
Mas o leitor que vira as páginas de seus escritos vê exemplos reais “dessa louca devassidão” não encontra mais que uma crescente decepção de ser feliz.
Ficamos, então, sem saber exatamente o que Agostinho pretendia nas ruas do pecado do Cartago.
A impressão é de que não era muito mais do que as habituais escapadelas de estudante.
Não se pode negar, porém, que Agostinho tinha problemas com sexo.
Ele tinha um forte impulso sexual, e provavelmente gostava de sexo quando efetivamente o fazia.
Mas também desejava ardentemente permanecer casto, mas não conseguia.
Algumas sessões com um analista compreensivo teriam provavelmente minorado o problema mas isso teria privado a filosofia de seu maior expoente em quase mil e quinhentos anos.
Quando Santo Agostinho surgiu em cena, tinham-se passado seiscentos anos desde a morte de Aristóteles.
Depois que Santo Agostinho morreu, aproximadamente outros oitocentos anos transcorreram antes do surgimento de Tomás de Aquino.
Agostinho nasceu em 354 d.C., na pequena cidade de Tagasta, província romana da Numídia (atualmente Souk-Ahras, no interior do nordeste da Argélia).
Seus pais eram aparentemente um casal classe média e pinguço.
Mas seu pai beberrão, Patrício, desenvolveu sintomas alcoólicos de desintegração emocional sob a forma de perversão obsessiva e surtos de violência.
Em decorrência disso, a mãe de Santo Agostinho, Mônica, voltou-se para a religião, repudiou o líquido pecaminoso e transformou suas frustrações e desapontamentos em ambições para o filho.
Sabemos bastante a respeito da juventude de Agostinho, graças às descrições contidas nas Confissões.
Desde o início, Mônica parece tê-lo oprimido, embora em nenhum momento ele ouse uma palavra contra ela, cujo cristianismo extravagante e puritano perpassa o livro desde a primeira página.
“Quem irá me lembrar os pecados que cometi quando bebê?”
Indagava-se Santo Agostinho, penitenciando-se por chorar pelo leite da mãe.
“Eu era de fato um grande pecador”, comenta ele, sem ironia, a respeito de seu desgosto em relação às aulas.
Mais tarde, já adolescente, ele realmente perde a linha.
Junto com colegas de escola, roubara frutos de uma parreira.
Como resultado dessa vil iniqüidade, entrega-se a uma orgia de autoflagelo que continua se estende a vários dias, (“alma sórdida expulsa do firmamento ... para as profundezas do abismo” etc.).
“Conseguirá alguém desenredar esse retorcido entrelaçamento de pecado em nós?
Eu estremeço ao olhar para isso ou pensar em tal abominação.
”
Mas afinal o que quer dizer tudo isso?
Pessoas com propensão à psicologia talvez encontrem traços simbólicos no jovem rapaz “derrubando ofruto da árvore”, mas essa explicação seria superficial e pouco informativa.
A verdadeira vilã da história era definitivamente a mamãe.
Não há dúvida de que Mônica guiava a vida doméstica da família.
Ela chegou inclusive a convencer o desaventurado Patrício a se converter ao cristianismo, provavelmente durante uma crise de remorso pelo alcoolismo, no ano anterior à sua morte.
E quando se tornou claro que o jovem Agostinho havia herdado alguns dos inconfessáveis hábitos do pai, ele foi banido de casa.
Mas por pouco tempo:
Mônica não admitia tê-lo fora de suas garras.
Nesse ínterim, Agostinho continuava pelejando com seu Problema.
Desesperado, algumas vezes chegou mesmo a voltar-se para Deus, implorando-Lhe, tocante, “Senhor, dai-me a castidade mas não ainda.”
Ele não queria que Deus “me curasse cedo demais da doença da luxúria, que eu desejava satisfeita, não subjugada.”
Agostinho era um garoto extremamente brilhante, e Mônica tinha grandes planos para ele.
Antes de morrer, Patrício havia juntado dinheiro suficiente para que o filho continuasse sua educação em Cartago.
Aí, longe da mãe, Agostinho viveu inúmeras experiências nos bordéis e desenvolveu o gosto pelo teatro (posteriormente descrito nas Confissões como “uma sarna repugnante, que incha e supura com medonho pus.
Que delírio miserável!”).
Mais tarde, foi viver com uma mulher, com quem partilhou uma longa relação de amor e fidelidade. Ela chegou inclusive a, “acidentalmente”, dar-lhe um filho.
(Nada é dito contra ela, pessoalmente, nas Confissões, o que o perturbou foi o que eles reiterada e prazerosamente faziam juntos.)
Mas Agostinho não era apenas um pedante que cultivava um problema; o desassossego que (supostamente) o conduziu a tais extremos de lascívia e de degradação (puramente literária) também o guiou em direção à descoberta da verdade sobre si mesmo.
Qual a razão desse comportamento?
Como ele podia ser tão completa e mesquinhamente vil e corrompido e, ao mesmo tempo, aspirar com a mesma intensidade à pureza?
A psicologia que poderia tê-lo enquadrado na mais completa normalidade não estava disponível ainda, e o cristianismo que lhe era oferecido pela mãe parecia demasiado simples para satisfazer seu intelecto exigente.
Agostinho precisava de uma explicação convincente para sua condição, uma explicação que fosse suficientemente profunda para que ele pudesse acreditar nela.
Começou a ler Cícero e passou a se interessar pela filosofia.
Foi Cícero, um membro da Academia de Platão, quem lhe ensinou a difícil tarefa de pensar adequadamente.
Mas Cícero não oferecia uma solução.
Agostinho encontrou o que buscava no maniqueísmo, uma seita próxima do cristianismo, fundada um século antes por um persa chamado Maniqueu, que declarara ser o Espírito Santo e terminara crucificado por adoradores do fogo.
O maniqueísmo era essencialmente dualista em sua essência, e seus adeptos acreditavam que o mundo era produto do conflito entre o Bem e o Mal (ou Luz e Trevas).
A alma do homem consistia em luz enredada em trevas das quais devia procurar se libertar.
Era uma crença feita sob medida para Agostinho em seu atual estado, ainda que tivesse sido proscrita como heresia pela Igreja cristã.
Agostinho adotou o maniqueísmo de braços abertos. Sua mãe não ficou satisfeita quando ele voltou para casa após quatro anos de estudo em Cartago.
Ela podia até aceitar a amante e o filho (cuidaria disso mais tarde), mas não o
maniqueísmo.
Isso oprimiu seu coração, e ela não via por que esconder este fato.
Enquanto isso, Agostinho agora com vinte anos, começou a ensinar retórica em sua cidade natal e a se interessar por astronomia.
Porém era ainda ambicioso, e um ano mais tarde retornou a Cartago, onde trabalhou na universidade como professor visitante.
Infelizmente, os tempos estavam mudando, e os alunos se tornavam incontroláveis.
Os problemas de disciplina chegaram a tal ponto que era impossível lecionar, e Agostinho decidiu partir para Roma com a amante e o filho pequeno, a fim de procurar trabalho.
Por essa época, Agostinho começou a questionar intelectualmente o maniqueísmo.
As últimas descobertas da astronomia não batiam com as explicações mitológicas dos céus apresentadas pelos maniqueístas.
Recebeu a visita do bispo Fausto, o sábio maniqueísta, e juntos discutiram essas questões.
No final, porém, o bondoso bispo viu-se forçado a admitir que não tinha resposta para esses problemas, o que deixou Agostinho pensativo.
Sua mãe não aprovava a viagem para Roma e foi até Cartago para lhe dizer.
Antes de o barco partir, houve uma cena no cais, com Mônica “agarrada em mim com toda a força, na esperança de que eu voltasse para casa ou a levasse comigo”.
Agostinho finalmente convenceu-a de que o barco não partiria antes da manhã seguinte e ela então saiu para visitar um templo a São Cipriano que havia nas vizinhanças.
Ele então partiu secretamente, protegido pela escuridão, “deixando-a só, com suas orações e suas lágrimas”.
Em Roma, continuou a conviver com maniqueístas.
Apesar de suas dúvidas, permanecia adepto da doutrina de que não somos nós que pecamos, mas sim alguma outra natureza obscura, que nos enreda a alma.
Continuou a dar aulas, e em um ano seu brilho intelectual se tornara evidente.
Foi-lhe oferecido o cargo de professor de retórica em Milão.
Milão acabara de substituir Roma como capital administrativa do Império Romano, que se encontrava no processo de cisma entre suas metades oriental e ocidental.
O Império entrava num dos períodos mais bizarros de seu longo declínio, com o coroamento de imperadores adolescentes e coisas do gênero.
(O exército recentemente se superara ao proclamar um menino de quatro anos imperador, mas esse exemplo de inteligência militar fora polidamente desconsiderado, um adulto degenerado fora colocado temporariamente em seu lugar.)
O então imperador residia em Milão, mas a figura mais influente da cidade era o bispo mais tarde Santo Ambrósio.
Seu poder era tão grande que havia ordenado ao imperador Teodósio que pagasse uma penitência por ter provocado um massacre em Tessalônica.
Ambrósio era um dos espíritos mais brilhantes da cristandade e seus sermões atraíam enormes multidões.
Agostinho foi ouvi-lo e de imediato se libertou de dois preconceitos que cultivava em relação ao cristianismo.
Constatou que essa religião podia ser abraçada por alguém intelectualmente mais capaz, e comprovou também que a Bíblia era um livro mais profundo do que ele acreditava ser, e que nem sempre devia ser interpretado ao pé da letra.
Um ano após a chegada de Agostinho em Milão, sua mãe finalmente alcançou-o.
Ele agora podia garantir a Mônica que não era mais um maniqueísta, porém, não chegava a ser um cristão.
Ainda tinha grandes ambições no que dizia respeito a “fama, dinheiro e casamento”.
Mônica parece ter sido totalmente favorável a isso e logo o convenceu de que era hora de encontrar uma esposa adequada. Selecionou-se então uma jovem de boa família e eles ficaram noivos, embora ela fosse tão nova que teriam de esperar dois anos para se casar legalmente.
Mas havia um preço a ser pago por tudo isso.
“A mulher com quem estivera vivendo [por mais de doze anos] foi tirada do meu lado por ser um obstáculo a meu casamento e esse golpe feriu meu coração até que sangrasse, uma vez que eu lhe queria muito bem disse ele.”
A amante de Agostinho que permanecesem nome ao longo das Confissões viu-se obrigada a deixar o filho com ele e foi enviada de
volta à África “jurando nunca mais entregar-se a outro homem”.
(Essa última observação é geralmente interpretada como símbolo de seu eterno amor por Agostinho, embora as mulheres possam julgá-la de outro modo.)
Agostinho logo achou a perspectiva de uma espera de dois anos até o casamento insuportável e arrumou outra amante embora tenha continuado “devastado” pela perda da primeira. Mais do que nunca Agostinho se via agora atormentado pelo “problema do mal”.
Já não conseguia acreditar nos maniqueístas, principalmente por conta de sua inferioridade intelectual. Eles pareciam incapazes de responder a suas perguntas sobre astronomia ou explicar o problema de seu incontrolável impulso sexual.
Contudo, parecia não haver alternativa à sua interpretação dualística do mundo.
A alma de Luz que residia dentro dele continuava irremediavelmente presa das Trevas, fora de seu controle.
A própria noção de dualismo, no entanto, parecia-lhe cada vez mais inaceitável.
E então descobriu a obra de Plotino.
Plotino nasceu em Alexandria no começo do século III d.C.
Como muitos críticos perspicazes, acreditava que compreendia o que lia melhor que o próprio autor.
Assim, estava convencido de que entendia a filosofia de Platão muito melhor que seu próprio criador. Na tentativa de explicar
o que Platão de fato quisera dizer, transformou suas teorias no que passou a ser conhecido como neoplatonismo.
Plotino acrescentou à teoria de Platão um verdadeiro coquetel de aspectos das idéias de Pitágoras, Aristóteles e os estóicos, acrescentando ainda uma pitada mística pessoal.
Assim como Platão, os neoplatônicos viam a realidade última e o bem como transcendentes.
A realidade maior era o Uno.
Tudo emanava dessa unidade numa ordem descendente de realidade, valor e integração.
O mal era oriundo da matéria indistinta presente na base dessa escala, no ponto mais distante do Uno.
Isso significava que não era necessário qualquer dualismo para descrever a natureza do mal, conforme exigiam os maniqueístas.
Para os neoplatônicos, o mal era simplesmente a ausência do bem.
Era o objeto mais afastado da realidade maior do Uno e, conseqüentemente, a menos verdadeira de todas as coisas.
Aí estava a resposta ao dualismo inaceitável de Agostinho, uma resposta que resolvia de uma vez por todas o problema do mal
(que quase não existia).
Nesse estágio de desenvolvimento, o neoplatonismo se assemelhava em muitos aspectos a uma versão filosófica do cristianismo, mas sem um Deus cristão.
Durante todo esse tempo, Agostinho se aproximava cada vez mais do cristianismo de sua mãe; numa tentativa de descobrir o caminho para a verdade, chegou mesmo a iniciar a leitura das Epístolas de São Paulo.
Mas ainda não se sentia capaz de dar o passo definitivo.
Por volta de agosto de 386 d.C., essa crise espiritual deixou-o à beira de uma estafa mental. Um dia, perturbado pela raiva e pela angústia por seu estado de indecisão, buscou alívio na quietude de seu jardim.
Por um tempo, puxou violentamente os cabelos e bateu em sua testa com os punhos.
Enfim, atirou-se sob uma figueira e chorou copiosamente.
Foi então que, aos poucos, foi prestando atenção à voz cadenciada de uma criança numa casa vizinha cantando “Tolle, lege. Tolle, lege” (Pegue, e leia).
De início, pensou que o canto da criança fizesse parte de algum jogo, quando de súbito compreendeu que “aquilo só podia ser uma ordem divina para abrir meu livro das Escrituras e ler as primeiras linhas em que meus olhos batessem”.
Imediatamente parou de soluçar, levantou-se e correu até a cópia das Epístolas de São Paulo, que deixara em um banco
próximo. Pegou o livro, abriu-o e leu as primeiras palavras que viu:
“... não na orgia e naembriaguez, não na luxúria e na lascívia, não na disputa e na inveja.
Ao invés disso, tome a si o Senhor Jesus Cristo e não se demore mais pensando na carne, a fim de saciar seus desejos.”
Agostinho fora convertido então.
Voltou para casa e contou à mãe o que tinha acontecido, e ela se encheu de alegria.
Durante séculos, muitos cristãos consideraram a conversão de Agostinho ao cristianismo um milagre, mas vale a pena ressaltar que, prestando atenção às Epístolas de São Paulo, a voz de Deus não tem muita opção senão falar em termos cristãos.
Tivesse Agostinho examinado os Upanishads ou o Livro Egípcio dos Mortos, talvez tivesse se deparado com uma passagem muito
similar que o exortasse a se tornar um hindu ou a adorar o Deus Sol Rá.
Agostinho se demitiu do cargo de professor e desistiu da idéia de se casar.
No sábado anterior à Páscoa de 387, ele e seu filho Adeodato foram batizados por Ambrósio em Milão.
Agostinho e a mãe decidiram em seguida retornar à Numídia.
Quando estavam prestes a embarcar no porto de Óstia, Mônica contraiu uma febre.
Agostinho fez o que pôde cuidando dela, mas sua missão tinha sido concluída e ela morreu.
Anos mais tarde Mônica foi canonizada, sendo hoje a padroeira das mulheres casadas. Seus restos sagrados foram transferidos para Roma, onde jazem adequadamente na Igreja de Sant’Agostino.
Ela é mais lembrada hoje pelo nome de um tranqüilo subúrbio à beira-mar em Los Angeles, cuja população por certo não teria seu comportamento aprovado por ela.
A morte de Santa Mônica encerra a parte narrativa das Confissões, que Agostinho escreveria uma década mais tarde. Agostinho voltou para a África e para sua casa em Tagasta, acompanhado de diversos amigos devotos.
Aí estabeleceram uma comunidade para viver uma vida monástica, e Agostinho passava a maior parte do tempo escrevendo e estudando.
Apesar de todos os seus arroubos de paixão e pecado, era essencialmente um tipo contemplativo.
Esse era o tipo de vida de que mais gostava, e é quase certo que foi durante esse período que desenvolveu as reflexões que serviriam de alicerce para sua filosofia.
Agostinho tinha sido particularmente tocado pelos elementos místicos do neoplatonismo e pela idéia de que o espírito interior do homem liga-o à realidade suprema.
Plotino acreditava que, para alcançar o Uno supremo, a realidade última, devíamos olhar profundamente para dentro de nós mesmos. Essa tinha sido a experiência de Agostinho, e ele procurou então reconciliar a doutrina de Plotino com o cristianismo de São Paulo, o que no fim levou-o a reconciliar o neoplatonismo como um todo com os ensinamentos da Bíblia.
A fusão dessas duas doutrinas, que estavam longe de serem complementares, seria a mais importante contribuição de Agostinho à filosofia, uma vez que não só deu ao cristianismo uma
sólida base intelectual, como vinculou-o à tradição filosófica grega.
Assim, o cristianismo conseguiu manter a chama da filosofia acesa por toda a Idade das Trevas, ainda que seu brilho fosse um tanto baço. Ao longo de sua obra, Agostinho desenvolveu diversas idéias filosóficas próprias.
O pensamento grego de Plotino, analogamente à nossa maneira de pensar hoje, não aceitava que algo pudesse ser criado a partir do nada, como na Bíblia. Para os neoplatônicos, o Uno era
atemporal e sem objetivo. A fim de tornar o neoplatonismo coerente com o Livro do Gênesis,
Agostinho introduziu no primeiro a criação e “a vontade de Deus de que coisas boas devem
existir”.
Nesse ponto, porém, deparou-se com uma dificuldade.
Como poderia o Uno atemporal(que então se transformara em Deus) operar no tempo?
Esse problema levou Agostinho a propor uma teoria do tempo muito à frente de qualquer pensamento grego antigo sobre o assunto e que não chegou a ser seriamente desafiada até o surgimento, treze séculos mais tarde, da teoria de Kant (que alguns vêem como um mero desdobramento da idéia original de Agostinho).
Segundo Agostinho, Deus existe fora do tempo, o
qual começou somente com a criação do mundo. Portanto, a pergunta “O que aconteceu antes da criação do mundo?”
Não tem qualquer validade. Para Agostinho, o tempo é subjetivo e existe
na mente humana como um aspecto de nossa maneira de ver as coisas.
Não podemos ver o mundo de outra forma embora a realidade última não esteja sujeita ao tempo.
Esse subjetivismo essencialmente cego e inconsciente levou Agostinho a questionar a própria base do conhecimento subjetivo.
O que podemos saber sobre a realidade última se ela está além de nós em todos os sentidos? Com efeito, o que sabemos afinal?
Com precisão, nada – exceto que existimos e que estamos pensando. Essas idéias, presentes nos Solilóquios de Santo Agostinho,
antecipam em mais de onze séculos o famoso Cogito, ergo sum (“Penso, logo existo”), de
Descartes, que iria revolucionar a filosofia.
Felizmente essa passagem foi desprezada, ou não foi seguida, pelos sucessores medievais de Agostinho – ou provavelmente eles teriam acabado queimados na fogueira. Em 391, Agostinho visitou Hipona (antes Bône, atualmente Annaba, no litoral nordeste da
Argélia), onde o bispo Valério convenceu-o a se ordenar, o que o obrigou então a deixar sua
comunidade.
Cinco anos depois, o já idoso Valério nomeou-o bispo auxiliar de Hipona e, após sua morte, um ano mais tarde, Agostinho foi chamado a assumir todo o seu trabalho pastoral. Nessa época o bispo era não apenas o supremo sacerdote local, como também o professor de teologia e juiz de direito da cidade.
Apesar dessas obrigações árduas, Agostinho continuou a produzir prolificamente.
Durante os dois anos que se seguiram à sua nomeação como bispo, escreveu inúmeros panfletos e sermões e manteve vasta correspondência.
Também escreveu as Confissões, que, além de descreverem as agonias sexuais de sua juventude, contêm uma das mais profundas declarações de fé encontradas em todos os escritos cristãos, trazendo ainda um esboço de sua filosofia, inclusive de sua original teoria do tempo.
Infelizmente, nem toda a vasta produção literária de Agostinho era de tão alta qualidade.
Como muitos convertidos, tornou-se obcecado pelas filigranas da doutrina da Igreja.
Boa parte de seu precioso tempo era gasto em inflamadas campanhas de denúncia dos desvios do pensamento ortodoxo. A heresia maniqueísta, que ele conhecia tão bem, foi especialmente censurada (“essa indizível excrescência mental”).
Mas essa não era a única heresia.
Os donatistas, por exemplo, eram uma seita cristã que se destacou no norte da África, no início do século IV, quando romperam com a Igreja de Roma.
Eles sustentavam que a Igreja deveria se manter totalmente livre da interferência do Estado.
Até aí tudo bem, mas uma parte central de seu programa previa uma revolução contra o Estado que seria seguida pelo advento dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse e do fim no mundo.
Esse programa social recebeu o apoio de guerreiros camponeses conhecidos como circuncélios.
A hostilidade “agradava” os donatistas, pois revelavava a maldade do mundo.
Eles acreditavam numa vida de penitência e perseguição, que, com sorte, acabaria em martírio.
Isso tornava extremamente difícil derrubá-los, uma vez que qualquer medida tomada contra eles era bem recebida e só fazia confirmar seus pontos de vista.
Na época em que Agostinho se tornou bispo de Hipona, grande parte dos cristãos do norte da África haviam se voltado para essa heresia, e Agostinho passava grande parte de seu tempo escrevendo violentos textos polêmicos condenando-os.
Mais tarde, Agostinho voltou-se também contra o pelagianismo, seita herética criada por um monge galês chamado Morgan (este nome deriva da palavra gaélica para marinheiro, traduzida para o latim como Pelágio).
Quando Irmão Morgan chegou a Roma, seu honesto espírito galês se assustou com a lassidão moral do sacerdócio, que tendia a ter uma visão muito mais relaxada e “mediterrânea” de seus votos.
Mas Morgan logo detectou a causa do problema.
Um dia, ele ouviu um sermão no qual um bispo se referiu a uma passagem das Confissões (cuja ênfase específica na obscenidade logo estimulara as vendas e a imaginação por toda a cristandade).
A
passagem citada pelo bispo explicava o ponto de vista de Agostinho segundo o qual a bondade não é possível sem a intervenção da graça divina o que chegava bem perto da idéia de predestinação.
Morgan se deu conta então de que muitos estavam usando essa doutrina como desculpa para sua lassidão moral não fazia sentido esforçar-se para ser bom se isso dependia da intervenção da graça divina.
Morgan se opôs a esse ponto de vista com uma doutrina própria que sustentava a inexistência do pecado original e que o homem era capaz de conquistar um lugar no céu sem a intervenção da graça de Deus.
Essa perniciosa heresia provocou uma tempestade de protestos, inclusive de Agostinho, que imediatamente saiu em defesa de sua teoria ética, começando por escrever uma série de textos polêmicos inflamados atacando o perverso galês e seu bando cada vez maior de seguidores.
Então Agostinho perdeu boa parte de seu tempo nessa campanha, e logo ficou conhecido em todo o mundo cristão como baluarte da ortodoxia.
(De acordo com Agostinho, até as crianças não batizadas estavam condenadas à maldição eterna, o que obviamente não é verdadeiro).
É inevitável imaginar o que fazia com que um pensador de seu quilate gastasse tanto tempo e energia em tamanhos absurdos.
Contudo, isso não era um subterfúgio psicológico pessoal, era sintomático de uma obsessão coletiva que daí em diante atacaria a Igreja por muitos anos.
Na perspectiva histórica, só podemos nos maravilhar diante da obstinação de Agostinho e dos outros grandes espíritos europeus da época, que gastavam seu tempo desse modo.
O Império Romano apresentava seus últimos sintomas de colapso antes da Idade Média e, enquanto isso, os mais argutos intelectuais do cristianismo se ocupavam em cáusticas controvérsias sobre a intervenção da graça divina, decidindo se crianças pagãs iam ou não para o inferno e se a castidade era necessária.
Em 410 d.C., Alarico e os vitoriosos visigodos levaram a cabo entusiasticamente o saque de Roma.
Eles foram os primeiros estrangeiros a invadir as muralhas da cidade em quase oitocentos anos de existência. A queda de Roma foi de imediato atribuída à perda de fé nos antigos deuses, cujo culto fora recentemente banido pelo imperador Teodósio em favor do cristianismo.
Enquanto Júpiter fora adorado, Roma tinha dominado mas, agora, eis o que tinha acontecido.
Era tudo culpa dos cristãos.
Esse argumento irritou Agostinho, que decidiu contestá-lo.
Sua resposta foi.
A cidade de Deus, grande obra de teologia e filosofia, que infelizmente é ainda mais ilegível hoje do que as Confissões.
Em A cidade de Deus, Agostinho estabelece a primeira visão cristã da história, permitindo aos cristãos aceitar a queda de Roma como parte da ordem divina das coisas.
Contra a Cidade Terrena, cujos habitantes se deleitam com o mundo temporal, ele postula a Cidade de Deus, uma comunidade inspirada pelo amor de Deus através da intercessão da graça divina.
A
Cidade de Deus era de existência puramente espiritual e não devia ser identificada com qualquer
outro lugar sobre a Terra, nem mesmo com a sacra cidade de Roma.
Essas idéias teriam efeito
profundo sobre a Igreja medieval e mais tarde chegaram inclusive a exercer alguma influência
sobre a Reforma.
Ao longo de A cidade de Deus, Agostinho formula alguns argumentos engenhosos.
Os cristãos
não deviam se entristecer diante da visão dos godos caminhando impunes para o saque de Roma.
(Os visigodos, um subgrupo dos godos, foram de fato os autores do feito, mas Agostinho preferiu
ignorar esses detalhes quando se referia a esses bárbaros sanguinários.)
Ele assegurava a seus
leitores que os graves crimes dos godos seriam punidos quando eles chegassem diante do Criador.
Afinal, se todo pecado fosse punido na Terra, para que um Juízo Final?
Dadas as preocupações habituais de Agostinho, A cidade de Deus também contém extensas
longas passagens sobre sexo, que parecerão ao leitor moderno implausíveis, hilárias ou a última
palavra em práticas libidinosas, dependendo de seu ponto de vista.
Ele chega a explicar como
Adão e Eva poderiam facilmente ter feito sexo antes da Queda (embora ressalte que isso com
certeza não ocorreu), e que isso teria sido um ato de vontade, sem luxúria. Como Agostinho
reconheceu, isso teria deixado o órgão de Adão imune ao desejo, apresentando, assim, um
argumento que demonstra como o ato mecânico necessário pode ser conseguido apenas pela
força de vontade.
Qualquer um que creia que filosofia não é um assunto risível deveria ler essa
passagem. (Ver a citação na seção de trechos das obras de Agostinho.)
Agostinho também discute se as virgens estupradas pelos godos durante o saque de Roma
permaneciam virtuosas, questão que provocou grande incômodo na época. Em sua opinião, sim,
uma vez que a castidade era uma virtude da mente.
Mas elas não eram mais virtuosas se
tivessem gostado da experiência. Ele acrescenta que Deus pode ter permitido esses estupros
porque as vítimas eram orgulhosas demais de sua castidade.
Embora grande parte da teologia de
Agostinho possa parecer atualmente sem sentido ou maçante, essas passagens permanecem tão
ofensivas hoje quanto devem ter sido, na época em que foram escritas, para qualquer um com o
mínimo de discernimento.
E isso não implica qualquer dúvida quanto à integridade de Agostinho;
se ele também tivesse sido violentado pelos godos, isso provavelmente não teria mudado sua
opinião sobre o assunto.
Agostinho levou treze anos para escrever A cidade de Deus, que terminou em 426 d.C., aos
setenta e dois anos. Durante todo esse tempo, manteve suas obrigações como bispo de Hipona,
além de escrever centenas de sermões e de levar adiante sua vigorosa perseguição aos hereges.
(Após a queda de Roma, Pelágio-Morgan chegou ao norte da África e começou a pregar suas
heresias no território de Agostinho, servindo assim de constante estímulo e fonte de inspiração.)
No entanto, apesar de suas funções públicas e do prestígio de que gozava em todo o mundo
cristão, Agostinho permaneceu basicamente isolado, um erudito ocupado nas tarefas que
determinava para si mesmo.
Em seus últimos anos de vida, dizem os relatos que era o único
homem em Hipona a possuir um livro. Esta era a cidade da qual o primeiro grande filósofo
cristão, Santo Agostinho de Hipona, tiraria seu nome.
O porto industrial de Annaba, na Argélia, ocupa hoje o território onde antes situava-se Hipona.
À medida que as balsas se aproximam, vindas de Marselha, podem-se divisar, sob a fumaça
produzida pela enorme usina de aço, as mesquitas e os espalhafatosos bulevares coloniais.
Nos limites da cidade em expansão, altos edifícios de apartamentos se estendem por sobre as colinas.
Mas, além dessas fronteiras, a paisagem permanece em grande parte como deve ter sido há
quase dezesseis séculos, na época de Agostinho o alto das colinas pontilhado de bosques de
carvalhos, costa e mar se encontrando sob o céu da África, alto e azul.
As indescritíveis ruínas da antiga Hipona localizam-se a vinte minutos a pé ao sul do centro da
cidade, perto da grande usina de aço. Mais ao alto, acima das ruínas, destaca-se uma basílica
chocha, de construção francesa, que data da virada do século e é dedicada a Santo Agostinho.
Nada resta do grande santo cristão no local.
No entanto, essa moderna cidade muçulmana vive
nos dias atuais um redespertar do fanatismo religioso que Agostinho certamente reconheceria:
aspectos fundamentalistas refletem muitas de suas próprias preocupações.
(No entanto, se
Agostinho tivesse vivido para ver a ascensão do islamismo, este certamente teria recebido a
mesma longa sabatina imposta aos maniqueístas, aos donatistas e aos pelagianos.)
Durante os últimos anos de vida de Agostinho, o declínio do Império Romano prosseguiu, a
passos largos. Em 428 d.C., os vândalos invadiram as províncias do norte da África, e em maio
de 430 tinham alcançado os portões de Hipona.
Quatro meses após o início do cerco, que duraria
um ano, Agostinho morreu, em 28 de agosto de 430. Seu dia é hoje celebrado nessa data.
Agostinho foi amplamente reconhecido como santo logo após sua morte.
(O processo formal de
canonização ocorreu apenas no final do primeiro milênio.)
Os vândalos logo dominaram todo o norte da África, e em 497 seu rei, Thrasamund, expulsou
os bispos católicos da Numídia.
Ao partirem, para a Sardenha, os bispos levaram consigo o corpo
de Agostinho, que ali ficou até as invasões sarracenas, no século VIII, quando o então rei dos
lombardos, Luitprand, resgatou-o e ordenou que seus cavaleiros o trouxessem até Pavia, na Itália,
onde permanece até hoje. Quando se desce pela Strada Nuovo chega-se a uma igreja lombardoromânica do século XII, belamente batizada de San Pietro in Ciel d’oro (São Pedro em céu
dourado); perto do altar-mor, pode-se ver o r
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